O «Meu» Caramulo

O «Meu» Caramulo

Na lentidão do vale contemplo a Serra elevada, com os cabeços destacados em forma de seres vivos gigantes e modestos, com os olhos vesgos e envergonhados lobrigando as Serras da Lousã e da Estrela e, do outro lado, o oceano e as outras serras, como um monumento de duas cabeças sonolentas, cansada de proezas e de vistas. Pareciam inundar um paraíso que refloresce, dando guarida aos pássaros que continuam a voar fendendo o céu com as plumas ornadas como flores de rosas no início da época, por cima das árvores e entre os penedos iguais a anciãos elevados no outro remoto azul do céu, onde os falcões dominam e os corvos dormem a sesta entre o sulco dos outros pássaros, a meio-termo das encostas a transcender o escasso matagal, onde surgem os cabeços invariáveis, agora debaixo das neblinas que correm em direção ao mar. Ou, do lado oposto, a deslizarem pela extensa comba deixando rolar uma aragem lenta e húmida, manchando o vermelho-escuro da tarde depois do pináculo do Caramulinho, perturbando ao longe o sol que se esconde por detrás do cabeço proeminente, fazendo sombrear os pinheiros ao cimo das courelas e daquelas pastagens parcas e sem rebanhos, mas que a primavera toma conta quando regressa, vestindo a serra com tons variados, desde o amarelo ao vermelho e ao azul, vigiando as águas dos regatos já velhos e cansados, mas que mesmo assim espelham o céu com as suas presenças nos lugares habituais onde se vive a libertar substâncias químicas que aumentam o humor, a disposição e o sono, na ausência de fatores genéticos e criativos, ou a tranquilidade da vida, a transmitir emoções de alegria e de bem-estar na dádiva dos dias de sol.
Quando ao meio-dia coagem as formigas a procurar a sombra em busca de comida, saindo dos formigueiros para devorar os pequenos insetos que não resistem ao calor e caem no solo, ou no inverno quando a neve assola o espaço e as caldeiras de lenha oferecem a emoção na permutação do corpo, e a generosidade ativa as áreas do cérebro com apelo social e confiança onde não há razão de temor e ansiedade, as pessoas ficam mais leves nestes lugares de fundas fragas que os ancestrais na Serra construíram, com as cercas e as casas das aldeias na flor das pedras.
E não é possível evitar que, nos braços uns dos outros, presenciando esta felicidade na Serra, se beijem os lábios nos dias apaixonados, e se olvide jamais alguma vez terem experimentado algo tão amável e verdadeiro que não possa deter a vida. E os riachos correm para o mar, enquanto as andorinhas continuam a voar em direção ao sol e as outras aves desaparecem no alto, voando sedentas e jubilosas de águas mais abundantes, e os bichos repovoam os espaços devagar, porque as mudanças continuam lentas e complicadas com este alheamento regional corroído e atacado pelo bolor da sua posição, que acaba por despertar sempre demasiado tarde como se um infortúnio a obrigasse a alinhar tardiamente e a perfilar a contratempo, no entanto conseguindo refazer a própria substância da dilatação e dar um toque de realidade às coisas e aos acontecimentos, mantendo-se singela, conseguindo reproduzir-se sozinha com como as proteínas que estão entre as moléculas mais complexas e que, por isso, trabalham juntas.